O direito administrativo tem a seu cargo a delicada tarefa de encontrar o equilíbrio possível entre as atribuições e competências fundamentais da Administração discriminadas no direito europeu, na Constituição, nas convenções internacionais e na lei ordinária e os direitos fundamentais do indivíduo.
É hoje impensável um direito administrativo sem a consideração do indivíduo como centro de imputação de direitos e reciprocamente como destinatário de deveres. A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagrou claramente direitos dos administrados extensíveis a toda a actividade administrativa nos n.º 1 e 2 do art. 48, no n.º 1 do art. 52 e no art. 268, com amplas repercussões. Aos direitos dos particulares correspondem deveres da Administração. Consequentemente, o direito administrativo desenvolve-se todo ele no interior de uma relação jurídica entre a Administração e o indivíduo sujeito de autonomia. É esta a marca distintiva do sistema do actual direito administrativo, o todo ao qual ficam sujeitas as partes e mediante o qual fica esclarecido o sentido destas; um sistema de relações ou «relacional». O cidadão deixou de ser mero súbdito da Administração. Muito embora sujeito ao poder, o cidadão é visto como um titular de direitos perante a Administração ficando esta, por sua vez, vinculada aos mesmos e, consequentemente, numa posição de tendencial paridade com aquele. Nas palavras, por nós traduzidas, de P. HAEBERLE, a relação jurídica administrativa é o sintoma da proximidade do cidadão da Administração.
Ao mesmo tempo, a dogmática deve deixar de fazer do acto administrativo o seu centro, o que não significa a ele renunciar, como se verá, e assimilar uma nova lógica da Administração preparada para a regulação da actividade privada, a criação de infra-estruturas, o fornecimento de prestações aos cidadãos e, de um modo geral, para a curadoria da existência do cidadão através da criação de todo um conjunto de condições para o bem-estar geral. Tudo isto é bem conhecido.
Mas as coisas não ficam por aqui. A atenção do direito positivo e da dogmática que lhe corresponde está cada vez mais desperta para a realidade dos efeitos múltiplos ou multilaterais dos actos administrativos a ponto de a relação jurídica deles emergente transcender o seu destinatário directo ao mesmo tempo que gera efeitos que transcendem o caso concreto e individual, o que faz perder alguma consistência à distinção entre o regulamento e a actividade administrativa individual e concreta, tais as repercussões dos actos administrativos na conformação geral da actividade dos cidadãos. Esta realidade da multilateralidade das relações engendradas pela prática de meros actos administrativos tem óbvias repercussões procedimentais e processuais faltando apenas dela retirar as últimas consequências ao nível dogmático. Apontam estas para a substituição no centro da dogmática da figura do tradicional acta administrativo (e do contrato administrativo) pela da relação jurídica administrativa. Só esta é capaz de recortar com realismo a situação do cada vez mais paritário contacto bilateral e multilateral ou poligonal da Administração com os particulares, à medida dos efeitos externos dos actos administrativos, dos contratos administrativos e da actividade meramente material da Administração. Só aquela noção é capaz de retratar um direito administrativo como um direito regulador dos recíprocos direitos e deveres da Administração e dos cidadãos e não como um direito apenas da Administração.
A relação jurídica administrativa analisa-se na disciplina do contacto entre a Administração e os cidadãos pelo direito administrativo. Acontece que esta disciplina tem evoluído numa direcção dupla. Por um lado, acentua-se uma posição cada vez mais paritária entre os intervenientes, a ponto de a podermos hoje caracterizar em larga medida como uma relação entre partes tendencialmente iguais, pois que o cidadão surge perante a Administração dotado de direitos ao mesmo tempo que aquela surge perante o cidadão dotada de deveres que lhe impõem o estrito cumprimento das vinculações legais com implicações procedimentais, orgânicas e processuais. Longe vão os tempos em que a Administração era apenas poder e o cidadão mero súbdito. Pode dizer-se que hoje, perante a ordem jurídica, a posição- da Administração e do cidadão é tendencialmente igual, o que não quer dizer, como se verá, que seja igualitária. Por outro lado, como se disse, a disciplina jurídica tem de ter em consideração a realidade dos efeitos externos ou múltiplos da actividade administrativa mesmo da que tem destinatários individuais e concretos, sabendo acautelar e valorizar a posição dos destinatários reais das medidas administrativas muitas vezes alheios aos que são directamente visados pelos actos praticados e pelos contratos celebrados. Os efeitos externos ou multilaterais dos actos administrativos (e dos contratos) demonstram-nos que a relação jurídica em que estão envolvidos é, na realidade, multilateral e não apenas bilateral, o que não pode deixar de ter a maior influência na respectiva disciplina jurídica. A disciplina jurídica deve estar atenta a esta realidade insofismável.
Ora, é precisamente para retratar essas situações da cada vez maior paridade entre a Administração e os cidadãos e dos referidos efeitos multilaterais da respectiva actividade individual e concreta que a noção de relação jurídica administrativa é particularmente apta. A perspectiva é, portanto, horizontal e não apenas vertical
Relação Jurídica Administrativa, A
Autor(s)
Luís Solano Cabral de Moncada
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Editora:
Coimbra Editora
Ano:
2009
Nº Páginas:
1068
Peso:
0 Kg
Dimensões:
mm
ISBN:
9789723217575
Categoria(s)
Direito Administrativo
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