Agosto, Porto, 1953 Conheci o Régio. Um bichinho da terra, quase triste, se não fossem os olhos – contas inquietas, vivas, observadoras, movendo-se rápidas e fundas por detrás dos óculos. Ah! os óculos! Negros, listrados de incrível amarelo – qualquer coisa de sonho que, não sei como, pôde trazer para a realidade. Penso que viajou fora do tempo até àquele em que os animais falavam e aí conheceu um lagarto míope. Foi o bichinho – disso não tenho dúvidas – que lhos ofereceu. Muito gostaria de pô-los!Abril, 1957 A chuva parou. Bamboleante um assobio sobe a rua e chega aqui ao quarto. Para os lados de S. Francisco as cornetas do quartel – iguais às que vinham outrora dos lados do jardim da Carreira – tocam o recolher. Trazem-me uma saudade de coisas perdidas, da infância: o perfume das maçãs que as brasas tisnavam lentamente, enquanto a tia rezava o terço e eu olhava já sonolenta o retrato de vovó Ana. Aquele retrato! Dava-me sempre a estranha sensação de que eu não podia deixar de ser a ressurreição daquela avó, que se reduzia a um retrato – e de quem eu tinha a voz, as mãos, a boca, o desenho das sobrancelhas.O som esvaiu-se de todo para os lados de S. Francisco. E com ele as memórias de outrora abandonaram o quarto, alugado e frio da pensão.
Na Àgua do Tempo - Diário
Autor(s)
Luísa Dacosta
14.50€ 13.05€ -10%
Editora:
Quimera Editores
Ano:
1992
Nº Páginas:
372
Peso:
0.580 Kg
Dimensões:
230x160x20 mm
ISBN:
9789725890301
Categoria(s)
Autores Portugueses
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Disponibilidade:
Em Stock